"Querido 2021, seja bem-vindo!
Entre, a casa é sua.
Se não for pedir demais, nos
devolva, por favor, todos os abraços que seu prezado antecessor nos roubou.
Queremos também as gargalhadas dos parentes e amigos, o livre sorriso dos
desconhecidos, a brisa no rosto.
Gostaríamos ainda de ter de volta
a alegria das viagens; a tumultuosa euforia dos estados e dos grandes shows;
todas as tardes em que não fomos beber cerveja com os amigos no boteco da esquina.
Não se esqueça de nos devolver
aqueles jantares intermináveis, em que discutíamos o fim do mundo e como
iríamos recomeçá-lo.
Hoje, que sabemos muito mais sobre
o fim do mundo, essas conversas antigas me parecem todas um tanto ou quanto
ingênuas. Contudo, mais do que antes, é importante conversar sobre recomeços.
Trocar sonhos. Debater utopias.
Peço em particular que me devolvas
festivais literários - dos quais, em 2019, eu estava até (confesso) um
pouquinho enfastiado. Durante o seu reinado, quero muito regressar a Paraty.
Não posso perder a FliAraxá, a Flup ou a Flica, em Cachoeira.
Eu, que não sou de futebol nem
carnaval, agora sinto ânsias de me perder entre multidões, gritando, sambando,
abraçando, me descobrindo nos outros. Quero dançar sem culpa. Quero poder
voltar a abraçar meus velhos pais sem medo de os contaminar.
A maior invenção da Humanidade não
foi a roda nem o fogo. Não foi o futebol, a feijoada, o samba, o xadrez, a
literatura, sequer a internet. A maior invenção da Humanidade, querido 2021,
foi o abraço.
Olho para trás e vejo a primeira
mãe, acolhendo nos braços o filho pequeno.
O nosso pai primordial apertando
contra o peito forte (e peludo) a mulher amada; dois amigos se consolando numa
armadura de afeto. Depois desses primeiros abraços, alguma coisa mudou para
sempre. O mundo continuou perigoso, sim, o mundo será sempre perigoso, mas
passamos a ter o conforto de um território inviolável.
Foi o abraço que fundou a civilização.
Com elevada estima,"
José Eduardo Agualusa
In, Mala d´estórias
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