[Morreu, aos
70 anos, Luis Sepúlveda, vítima de infeção pelo novo coronavírus. Deixa uma
vasta obra literária, um autêntico “exercício de memória”, onde a fábula,
melhor género para conhecer o ser humano “à distância”, como dizia, se
convertia num pretexto para se debruçar sobre as personagens que foi conhecendo
ao longo da vida. Porque a escrita não fazia parte de uma terapia para curar
feridas do passado. A escrita era sempre parte do presente do autor.
Nascido em
1949, numa pequena vila chamada Ovalle, no Chile, envolveu-se na política muito
novo, ainda na faculdade. Antes veio o teatro, ou a produção teatral, na
Universidade Nacional do Chile. Um género que iria marcar muito da sua vida
antes de se tornar um autor mundialmente famoso. Ainda em adolescente, decide
ler Moby Dick, de Herman Melville, com 16 anos. É com esse livro que desperta
uma dúvida que iria levá-lo até ao género da fábula, ao reino animal, esse
“convite à literatura”.
“Percebi que
Melville nunca se referia ao comportamento da baleia neste livro. Porque é que
ataca? Porque é que teve aquele comportamento? O testemunho era só dos
marinheiros naufragados”, contava em entrevista à RTP, em setembro de 2019, a
propósito do seu último livro, Histórias de Uma Baleia Branca.
Em 1969,
recebeu uma bolsa de cinco anos para estudar em Moscovo. Um ano antes conheceu
Carmen Yáñez, sua mulher de hoje. Os dois acabariam por ser afastados pelas
grades da ditadura durante vinte anos. Amantes distantes ideologicamente que
foram viver outra vida para mais tarde se voltarem a juntar. Uma maoísta, outro
guevarista. Correu mal, sofreu-se muito, mas resistiu-se.
Esta bolsa
de cinco anos transformou-se em apenas cinco meses de experiência no outro lado
do mundo. Foi expulso por “mau comportamento” ou, como se lê em inúmeros sites
sobre a sua vida, por “atentado à moral proletária”, por Sepúlveda ter mantido
supostos contactos com dissidentes soviéticos. Não ficou muito tempo, é certo,
mas talvez o suficiente para ter dado o nome de Carlos Lenine a um dos filhos,
que teve com Carmen. Hoje em dia, Carlos é músico de rock’n’roll na Suécia.
“Não renego o que fui”, confessa em entrevista ao Jornal SOL. Primeiro
comunista, depois socialista, algo que o levou a escrever dois livros: Nome de
Toureiro (1994) e O Fim da História (2017).
Regressa ao
Chile, sai da Juventude Comunista e filia-se no Partido Socialista com a
esperança de ver o seu país transitar para um outro modelo e junta-se a
Salvador Allende, fazendo parte inclusivamente do GAP (Grupo de Amigos Pessoais
do presidente, responsáveis pela sua segurança) — um grupo com quem continuava
a encontrar-se, sempre que possível. Mil dias depois, a 11 de setembro de 1973,
é instaurada a ditadura militar de Augusto Pinochet, a primeira em 136 anos de
história do país. Essa memória levou-o a escrever o Memorial dos Anos Felizes,
onde o autor descreve esta experiência política como “dura, intensa, sofrida e
satisfatória”, onde se fumava marijuana nos Andes e se ouvia Janis Joplin.
“Dormíamos pouco. Vivíamos em toda a parte e em nenhuma”, descreve.
Acaba na
prisão, onde esteve quase três anos, saindo em julho de 1977 graças à Amnistia
Internacional. No tempo em que esteve em prisão domiciliária, conseguiu
escapar-se e viver na clandestinidade, criando um grupo de teatro, visto como
resistência cultural à ditadura. Foi novamente detido e condenado a 28 anos de
prisão, por “traição e subversão”. Volta a Amnistia Internacional a ajudá-lo e
aí sim, começa a vida de exilado.
Durou 15
anos, sendo que esse fim de estar longe da pátria — logo ele que se considerava
um patriota — terminou na Nicarágua.
“Sou o escritor mais querido, mais
popular e mais acarinhado, mas, simultaneamente, sou sistematicamente ignorado
pelo governo. Para eles eu não existo, não se fala de mim, não faço parte dos
planos de leitura, de nada… os meus livros são pirateados na rua!”, confessava
em 2003, em entrevista ao Correio da Manhã.
Um
sentimento que não mudou, já que repetiu a frustração em entrevista ao
Observador, 13 anos depois, quando regressou, mais uma vez, à Feira do Livro,
para apresentar o seu livro História de um cão chamado Leal, onde explora a
cultura mapuche, dos habitantes originais do Chile. “Nenhum governo chileno
sente especial simpatia por mim”, conta alguém que tem no seu ADN uma “cultura
de resistência política”, como o próprio chama.
Em 1977,
decide rumar para a Europa, mais propriamente à Suécia, para ensinar literatura
espanhola. Só que durante uma escala em Buenos Aires, aproveita para fugir e
refugiar-se no Uruguai. Segue-se São Paulo e Paraguai, onde também não é bem
recebido pelo governo daquele país. É, por isso, no Equador que descobre a sua
próxima grande jornada: uma expedição da UNESCO para acompanhar os índios Shuar, com quem viveu sete meses, numa região da Amazónia, que “fracassou ao
fim de 12 semanas na selva”. Mas que, por persistência ou por curiosidade, lhe
deu a conhecer uma “outra maneira de entender a vida e a morte — sem medo”,
como confessa em entrevista ao Observador. E é dessa experiência que nasce O Velho que lia romances de amor (1989). E é também aí que começa uma das grandes
marcas na escrita de Sepúlveda: a preocupação ambiental, aliada a um sentimento
de justiça e luta pela igualdade. Especialmente por ter vivido, segundo o
próprio, num país com um sistema de educação público, laico, gratuito e que
mantinha uma responsabilidade ambiental muito forte, já que o Chile é alvo de
diversos desastres ambientais.
Depois,
passou, como referido anteriormente, pela Nicarágua, pelas Brigadas
Internacionais Simon Bolivar, para combater outro ditador, Anastácio Somoza,
desta vez com uma vitória. Parte para a Alemanha, onde se torna repórter em
Hamburgo. Mas a preocupação ambiental falou mais alto e Sepúlveda decide
juntar-se à Greenpeace, tendo participado numa das maiores ações da
organização, quando bloquearam o porto japonês de Yokohama, durante dois meses,
para lutar contra a caça da baleia. Dessa experiência sai o livro Mundo Do Fim
Do Mundo, uma homenagem aos voluntários da Greenpeace, onde o protagonista tem
uma história muito semelhante ao autor. Na vida real, um dos navios em que o
escritor chileno navegou chamava-se Moby Dick. A fábula e a realidade a
encontrarem-se. Antes de chegar às Astúrias, onde vivia atualmente com a
mulher, Sepúlveda teve ainda outras tantas “vidas”: trabalhou como motorista de
autocarros, foi correspondente em Angola e ainda viveu em França. Gijón foi terreno
do seu último exílio, pois fazia-lhe falta falar a língua materna.
O também
autor de História de um Caracol Que Descobriu a Importância da Lentidão (2016),
A Sombra Do Que Fomos (2009) ou História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou
a Voar (1996) nunca deixou de criticar as esquerdas sendo um homem de esquerda,
tendo, porém, esperança numa social democracia como alternativa. “A Europa
tem-se convertido, um pouco, num continente de diletantes da política, e eu não
confio em diletantes. Mas evidentemente há, ou tem de haver, exemplos, mas não
sei quais são”, disse em entrevista ao Jornal de Negócios há dois anos, a
propósito do lançamento do livro O Fim da História, no qual se debruça sobre
alguns dos episódios que viveu em primeira mão, dedicando-o à mulher. E também
nunca deixou de escrever, e, sobretudo, de ler, algo que gostava que fosse
considerado como profissão ou, pelo menos, que fosse algo remunerado.
Nunca
escreveu mais do que 200 páginas porque o jornalismo lhe deu capacidade para
resumir, para agarrar “o leitor na primeira palavra”, como disse em entrevista
ao jornal i em 2017. Gostava muito de cozinhar e gostava muito dos seus netos,
que lhe serviram também de inspiração para as fábulas. Antes de ser escritor —
muito disciplinado, com um horário restrito para escrever –, era cidadão, muito
ativo, sempre político. Ao jornal espanhol 20 minutos, Sepúlveda confessou que
não conseguia olhar para trás com melancolia.
“Vivo muito
bem com a nostalgia e não permito que se transforme em melancolia, que é estar
feliz por estar triste. Eu nasci e cresci num país que já não existe. Só tenho
a minha memória, mas essa é a nostalgia sã, a outra não a deixo entrar”.
Ficará,
talvez, o sonho, e a memória querida, de vir a contar histórias junto ao rio, como
fazia o seu tio-avô Ignacio, quando Luis Sepúlveda era mais novo.]
Texto extraído em:
Luis
Sepúlveda vendeu mais de 18 milhões de exemplares em todo o mundo e as suas
obras estão traduzidas em mais de 60 idiomas, inclusive em português.
Parte
das mesmas integram o Plano Nacional de Leitura.
Bibliografia
completa de Luis Sepúlveda:
Crónicas
de Pedro Nadie (1969)
O Velho Que Lia Romances de Amor (1988)
Mundo do Fim do Mundo (1992)
Nome de Toureiro (1994)
Patagónia Express (1995)
Encontro de Amor num País em Guerra (1997)
Diário de um Killer Sentimental (1998)
As Rosas de Atacama (2000)
Contos Apátridas, em co-autoria com Bernardo
Atxaga e José Manuel Fajardo (2001)
O General e o Juiz (2002)
Histórias do Mar (2002)
O Poder dos Sonhos (2004)
Os Piores Contos dos Irmãos Grim, em
co-autoria com Mario Delgado Aparaín (2004)
Uma História Suja (2004)
História de uma Gaivota e do Gato que a Ensinou
a Voar (2008)
A Lâmpada de Aladino (2008)
Crónicas do Sul (2008)
A Sombra do que fomos (2009)
Histórias Daqui e Dali (2010)
História de um gato e de um rato que se
tornaram (2012)
Últimas notícias do Sul, em co-autoria
com Daniel Mordzinski (2012)
História do caracol que descobriu a
importância da lentidão (2013)
Uma ideia de felicidade, em co-autoria com
Carlo Petrini (2014)
A venturosa história do Usbeque mudo (2015)
História de um cão chamado Leal (2015)
O Funeral de Neruda, em co-autoria com Renzo
Sicco (2016)
Palavras em tempos de crise (2016)
O fim da história (2017)
Todas as fábulas (2018)
História de uma baleia branca (2019)
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